Hélio Gavião

11 de Dezembro 2022 - 22h59

Hélio Gavião.

O apelido devia ser por conta de seu nariz adunco. Eu costumava chamá-lo de "Paco Gavillan", o bandido das montanhas. Um personagem de uma história que li. Ele ficava feliz e dava sua risada caracterítica, de hiena.

Era alto e forte. E tinha um jeito característico, cadenciado, de andar.  As pernas grossas, e tortas, e por isso facilmente confundido, ainda garoto de 15, 16 anos, com jogador de futebol. Parecia, acreditem, um craque atleta, mas era muito ruim de bola.

No entanto, estava metido em tudo que fosse pelada de rua e tentou jogar, sem sucesso, nos vários times de futebol da cidade. Morou alguns anos na Cidade Alta, na esquina da Rua Padre Pinto, no final da Apodi, cruzando as ruas Vaz Gondin, Gonçalves Ledo, Voluntários da Pátria, Santos Antônio e Padre Calazans, além de vários outros lugares.

As velhinhas e velhinhos moradores das imediações não iam muito com a cara dele. O danado fazia muita zoada na esquina e tinha mania de correr atrás dos gatos e cachorros. Eles diziam: "esse bicho dos 'zói' de gato não vale nada". E realmente era malvado demais, o Gavião.

E a sua risada de hiena era conhecida na esquina da padaria Avelino Teixeira e mercearia de Júnior e ressoava longe. Os adultos olhavam feio com reprovação. Ele, nem aí. Sabe aquele tipo de cara bagunceiro, mas que todo mundo (a turma, a rapaziada, entenda-se) gostava de ter por perto? Era ele.

Suas histórias eram sempre as mais engraçadas, para não dizer suas mentiras. Todo dia chegava com uma nova. Sem falar que tinha as velhas “requentadas” tantas vezes repetidas, sempre modificadas, mas que nos faziam rir cada vez mais.

Eram deles as ideias mais maldosas, traquinagens pesadas. Na casa de uma velhinha que criava nove cachorros pequenos, ele combinava, juntava a turma e fazia todos passarem correndo e bater no portão. A cahorrada ladrava furiosamente por mais de dez minutos a cada batida. Maldade pura. Mas era, para ele, vingança, pois a idosa marrenta e má furava as bolas que caíam em seu quintal.

Foi dele também a “criação” de encher saco plástico de xixi e jogar nos ônibus lotados. Horrível essa... E de aproveitar ovos podres no lixo da mercearia de “seu Joaquim” para jogar nos alunos que tinham a infelicidade de passar pela rua para pegar ônibus na parada, antiga, da Rafael Fernandes, a “rua da catinga”.

As histórias que mais gostava de contar envolviam sempre um amigo seu, o Selvinho, Sérvulo Deus. O companheiro era alecrinense, e gostava de jogar no gol, e nas narrativas de cobranças de pênaltis ele inventava as grandes mentiras. Num dia falava como o dublê de arqueiro foi parar no hospital por bolada no estômago. No outro, zombava de como ele caiu com bola e tudo dentro da rede porque quis agarrar um chute de um adulto; a intenção dele era sempre ridicularizar o coitado.

E ele ia narrando os causos como se fosse um locutor de futebol, e terminava sempre empolgadamente: “defendeuuuuuuuuuuuuuuuuu ....o goleirão Sérvulo de Deuuuuuusss...sensacional...! Só que, na presença ele pipocava, se mancava. Bastava Selvinho olhar feio e ele mudava de assunto. Era muito divertido. O amigo mais antigo sabia de uns segredos do nosso Gavião. A arma secreta para calar a boca do troçador. Ria, fechava a mão juntando os dedos em forma de bico e colocava na sua própria boca várias vezes em movimento de entra e sai...era a única maneira de calar Hélio Gavião, apelidando-o de “Chuchupa Hélio”...

O Paco Gavilan gostava de falar também de futebol. Um dos assuntos preferidos eram as supostas faltas de Icário, atacante, paraibano, famoso, que passou pelo Alecrim, campeão invicto, artilheiro em 1968. Ele exagerava deslavadamente ao dizer que as cobranças do atacante, sempre de curva, davam a volta no Morro de Mãe Luiza e entravam no gol do ABC, time que ele odiava. E contava ainda que, certa vez, Icário bateu uma falta tão forte que derrubou os “abcdistas lisos” que assistiam o jogo pendurados numa mangueira fora do JL.

Suas maiores brigas, e birras era com Toinho Nicotinha, outro personagem de quem já contei algumas histórias cabeludas. Sobre Toinho, Gavião repetia sempre um enterevero ocorrido entre eles: Segundo Hélio, todos os dias, ainda novato na rua, para passar pela esquina, 'fechada' por Nicotinha, tinha que “pagar o pedágio”, ou seja,dar um pão ao “peça rara que, não duvidem, era muito pior que o Paco nas armações e maldades planejadas.

E por conta desse “pão faltando” todo dia Hélio levava uma surra da sua mãe quando chegava em casa. E essa história não era inverídica, pois ele contava, e Nicotina não desmentia.  Certo dia, puto da vida, já tendo levado uma surra antes mesmo de sair de casa,  pensou consigo “esse fila da puta hoje me paga...” Na passagem, advinhando e para lhe irritar mais ainda, Toinho exigiu: “Ei, Gavião, hoje eu quero pão de côco”.

O nosso herói conta que baixou a cabeça, trincou os dentes, não falou nada, mas pensou. “Destá que eu vou lhe dar o pão de coco cabra safado”, e foi para a padaria. Na volta, quando o Nicotina, confiante, serelepe, com seu sorriso cínico e desdentado foi metendo a mão no saco de pão, Hélio Gavião deu-lhe um soco espetacular que o sem vergonha caiu por cima da porta de Zé Sapateiro, causando um rebuliço enorme na esquina já famosa.

Juntou gente, a galera toda tirou o coro de Toinho, foi zombaria geral. A vingança de Hélio Gavião. E foi assim. Nunca mais Nicotina ficou de botuca na esquina querendo lhe tomar um pão e, ao contrário, ficaram muito amigos, até mesmo nas artes das safadezas. Era sempre certo que,  depois de contar a história cem vezes repetida, ele caía na gargalhada, com a sua característica risada de hiena.

Tem mais umas duzentas histórias de Hélio Gavião, algumas impublicáveis. Mas era uma figura. Essa do jogo no "Caldeirão do Diabo" é emblemática para demonstrar quem era o atrevido Gavião. O time da rua, a seleção da Cidade Alta, ia jogar na Colônia Penal João Chaves, isso no tempo de bandidos famosos e perigosos como Severo, Arnaldo, José Vilarin, os irmãos Ruela, Mago, a família Timbira e tantos outros. Eram jogos de futsal acertados, vejam só, pelo pai de Nicotina, "seu João", que estava tirando cadeia por agressão a um advogado.

A gente era bem recebido, a turma  encarecerada torcia por nós contra os da casa. E havia muito respeito. Mas não tinha jeito para o nosso herói. Quando bola rolava, Gavião, com seu jeito debochado, metia o cacete para cima nos caras. Isso, se confiando, claro, garantido pelos fuzis dos vigias na torre que ficavam acompanhando o jogo sob ordens do diretor. Vejam só o risco que corríamos na nossa inocência e tara por bola.

No time da João Chaves, e era bom, tinha um bandido perigosíssimo, o Dedê, condenado por vários latrocínios. Ele jogava muito bem, de pivô, e limpo. Hélio Gavião não queria saber, irritado por levar uns dribles e não conseguir marcá-lo, impensandamete, loucamente, na verdade, derrubou o cara, fazendo uma falta feia e ainda pisou nas suas costas. Nem precisa dizer que os guardas de fuzis se prepararam...a coisa ia feder.

Dedê levantou, caminhou na direção de Gavião, olhou duro, não fez qualquer menção de agressão, revide ou coisa do tipo. Chegou bem pertinho do nosso zagueiro doido e disse: “bicho do ói de gato, aqui dentro você é valente, confia nos hômi do fuzil, mas lá fora até as pregas se encontra...”
Pensa que o desgraçado ficou com medo? Que nada! Passou o resto do jogo e do dia dando risada do bandido e ainda tripudiou: “sai daí otário, tu vai morrer aqui dentro...” Sorte dele que o Dedê nunca foi solto, e se saiu ninguém teve mais notícia.

Hélio Gavião, não me perguntem por quê, era titular no time da rua. No meio dos vários craques, craques mesmo, Zé Carlos, Toinho, Tinho, Pequeno das Cachorras, PPO, Paulinho, Zé Perequeté... ele dava um jeito de ser escalado. Vestia a camisa de númro 3 e ninguém tinha coragem de deixar ele no banco.

Ele só não se criava com Edival Burrão, dono do Independente da Cidade Alta que não fazia nenhum rodeio e dizia logo: “Não Hélio, tu é ruim demais, não joga no meu time não...” E ele não jogava mesmo. Talvez tenha sido por isso que, macomunado com Toinho Nicotina e o carcereiro Assis,  no mesmo “Caldeirão do Diabo” urdiram uma armação para assustar o pobre do Edival, que quase morre. Mas esta é outra história.

Hélio Gavião, que figuraça! Foi surfista, jogador de botão, tentou jogar no América, não conseguiu, nem futebol ou futsal. Por falar em América, essa é a última dele e vou contar: Era tempo da escolinha de Sombra, ex-goleiro que passou no clube nos anos 70 e teve essa ideia bacana e prestou um lindo serviço ao clube. Na sua escolinha passaram, surgiram nomes como Saraiva, Sandoval, Álvaro, Gilton, Newton Lima, Sérgio Poti e tantos outros.

E Hélio Gavião, como quase toda a garotada que gostava de futebol, foi lá treinar. A cada treino uma briga, uma pancada maldosa, uma provocação. Armou tanta confusão que o goleirão carioca, mesmo sendo uma das pessoas mais calmas que já conheci, perdeu as estribeiras...“Saia, saia, saia daqui senhor olho de gato, o senhor é marginal! É marginal! É marginal! E ficou repetindo isso várias vezes. Essa frase dita por Sombra ficou famosa na rua e nem precisa dizer que ele mesmo ficava dando gargalhadas rememorando o carão que levou de Sombra.

Hélio Gavião, Raimundo Hélio, perdeu o contato com a turma da Cidade Alta por muito tempo, até que Edival falou sobre seu falecimento precoce, pois se vivo fosse agora é que estaria com 66 anos, pois era dois anos mais velhos que eu, só.

Confesso, e não só eu, Hélio Gavião, o meu querido "Paco Gavillan", o bandido das montanhas faz muita falta. De vez em quando, eu, Bora Porra, meu irmão Edmundo e outros damos boas risadas relembrando suas histórias.

*Esse texto já foi publicado em outros portais que trabalhei, mas gosto de recontá-lo, até como recordação para mim.

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