Polêmica: Por que o governo esconde o caso do espião russo preso no Brasil?

02 de julho 2022 - 13h05

A notícia é da coluna de Rodrigo Rangel, do Metrópoles:

O Palácio do Planalto baixou uma ordem de silêncio para os órgãos de investigação e de inteligência envolvidos na prisão de Sergey Vladimirovich Cherkasov, cidadão russo preso pela Polícia Federal e apontado pelo serviço de inteligência da Holanda como um espião a serviço do regime de Vladimir Putin que usava identidade brasileira falsa para tentar se infiltrar no Tribunal Penal Internacional, em Haia.

Desde que as primeiras informações sobre Cherkasov chegaram ao governo brasileiro, ainda em abril, o caso ganhou contornos que beiram um roteiro de filme hollywoodiano.

Auxiliares diretos da Presidência da República foram convencidos pela área de inteligência de que, por trás do caso, haveria um movimento oculto do governo americano — da CIA, em especial — para criar uma crise diplomática entre o Brasil e a Rússia e contrapor Jair Bolsonaro e Putin.

O fator fertilizantes

Na contramão da maior parte da comunidade internacional, o governo brasileiro mantém relação amistosa com Moscou mesmo após a deflagração, pelos russos, da guerra contra a Ucrânia. O país adota posição politicamente neutra quanto ao conflito, condenado pela maioria das democracias ocidentais.

No início desta semana, Bolsonaro falou por telefone com Putin. O presidente russo garantiu ao colega brasileiro a continuidade do fornecimento de fertilizantes, cujo mercado mundial foi fortemente afetado a partir do início da guerra.

A Rússia é um dos maiores fornecedores globais de adubos e fertilizantes, e a interrupção das exportações para o Brasil poderia afetar sensivelmente o agronegócio.

Esse é um dos motivos pelos quais, desde o início da guerra, Jair Bolsonaro faz questão de não se indispor com Vladimir Putin, contrariando pressões vindas especialmente do governo americano.

Foi justamente essa orientação geral que guiou a postura brasileira no caso do espião russo. Tão logo recebeu os primeiros relatórios sobre o assunto, o general Augusto Heleno Ribeiro, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, sob o qual está a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ordenou que todas as informações passassem a ser tratadas como secretas.

Sobreveio, então, a ordem do Planalto para que todos os órgãos envolvidos — a própria Abin, a Polícia Federal e o Itamaraty — falassem o menos possível acerca do tema. Tanto foi assim que, sobre o assunto, a PF limitou-se a divulgar uma nota sucinta confirmando a prisão, sem quaisquer detalhes.

Outra diretriz foi para que o Brasil não admitisse, em nenhum momento, tratar-se de um caso de espionagem.

Dentro da mesma estratégia, optou-se por enquadrar Cherkasov por uso de documentos falsos, um crime de menor potencial ofensivo. Admitir a prisão de um espião russo, na visão dos mesmos integrantes do governo que optaram por colocar panos quentes no assunto, automaticamente criaria de imediato um desconforto na relação com a Rússia.

A prisão

Segundo o serviço secreto holandês, Sergey Cherkasov, de 36 anos, passou 12 anos construindo a identidade falsa: Viktor Muller Ferreira, 33 anos, nascido em Niterói, no Rio de Janeiro.

Ele teria chegado ao Brasil em 2010. Depois, já usando a identidade brasileira, morou nos Estados Unidos e na Holanda, onde tinha conseguido uma vaga de estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), também conhecido como Corte Penal de Haia.

Já sob monitoramento, ele veio recentemente ao Brasil e, em abril, embarcou em um voo daqui para a Holanda. Ao chegar lá, teve a entrada negada pelo governo holandês, que apontou a falsidade documental, o mandou de volta para o Brasil e avisou as autoridades brasileiras, às quais não restou alternativa a não ser prendê-lo no desembarque.

Junto com o alerta, os holandeses compartilharam toda a história com os órgãos de inteligência e investigação do Brasil. O governo passou a saber, desde então, que por trás dos documentos falsos havia um homem apontado por um país estrangeiro como um espião russo que tentava se infiltrar no tribunal penal — um caso, evidentemente, de repercussão internacional.

A estratégia do Brasil, porém, foi manter tudo sob o mais absoluto segredo. Era para ficar assim. Até que, tempos depois da prisão, e diante do silêncio brasileiro, no último dia 16 de junho o próprio serviço secreto da Holanda fez um comunicado público em que anunciou ter desmascarado o agente russo.

Teoria da conspiração ou realidade?

É quase impossível estabelecer em que medida a leitura feita pelos chefes da inteligência brasileira está calcada na realidade ou se baseia em teorias da conspiração. Mas os argumentos que definiram a sequência da trama são, no mínimo, interessantes.

Junto com o general Augusto Heleno, a cúpula da Abin avaliou que era preciso manejar o caso com todo o cuidado para não melindrar a Rússia. E daí se desenrolaram os passos seguintes: manter discrição e não “comprar” a versão da espionagem.

Foi ao fazer a avaliação que levou a essa decisão que a Abin e o GSI enxergaram o dedo dos Estados Unidos na história. No entender dos oficiais encarregados de analisar o caso, o serviço secreto holandês, que não tem atuação relevante em território brasileiro, não teria condições de descobrir sozinho a história do espião.

A leitura foi a de que a CIA estaria por trás da operação, em parceria com os holandeses, e estaria aproveitando o caso para provocar um estresse diplomático capaz de minar a relação de Brasília com Moscou.

O gabinete de Bolsonaro comprou a avaliação — e avalizou a proposta de não morder o que, para a Abin e para Heleno, seria uma “isca”.

Até hoje, a Abin e o GSI entendem que foi feita a coisa certa. Para os envolvidos na condução do caso, um indício do suposto plano mirabolante de americanos e holandeses é o fato de a Holanda não ter dado publicidade imediata à descoberta.

“Eles, na verdade, esperavam que o Brasil anunciasse a prisão de um espião russo, o que faria barulho e poderia gerar uma crise com Putin. Só que não caímos. E como não anunciamos nada, depois eles mesmos vazaram”, diz, sob reserva, uma fonte a par do caso.

A prova
A ordem é deixar o caso na surdina e continuar dando à trama ares de caso ordinário, embora a cúpula da inteligência brasileira acompanhe com máxima atenção os desdobramentos do episódio na Justiça, onde Sergey Cherkasov responderá pelo crime de falsificação de documentos.

Até dias atrás, mesmo nas comunicações reservadas com os serviços secretos estrangeiros, a Abin seguia negando ter elementos para enquadrar o russo como espião. Não está, porém, contando tudo.

A agência dificilmente admitirá, mas já sabe que ele é, sim, um agente a serviço de Moscou. A coluna apurou que os oficiais da inteligência brasileira já têm provas de que, depois de preso, Cherkasov pediu socorro a integrantes dos serviços de inteligência russos.

A ficha do espião
No comunicado feito em junho, o serviço secreto holandês afirmou que Sergey Cherkasov trabalha para o GRU, a maior agência de inteligência da Rússia com operações no exterior. O GRU é ligado às Forças Armadas russas.

“Esta foi uma operação do GRU de longo prazo e de vários anos, que custou muito tempo, energia e dinheiro”, declarou Erik Akerboom, do Serviço Geral de Inteligência e Segurança Holandês, o AIVD.

Os holandeses disseram que resolveram dar publicidade ao caso para evidenciar as estratégias da inteligência russa que põem em risco instituições internacionais como o Tribunal Penal Internacional.

Em nota, a agência afirmou que, se o oficial de inteligência tivesse conseguido entrar no TPI, poderia coletar informações, recrutar fontes e até ter acesso aos sistemas digitais da Corte.

O Tribunal Penal Internacional investiga possíveis crimes de guerra cometidos pela Rússia — e por Putin — na Ucrânia.

O silêncio continua

A coluna procurou os órgãos brasileiros que tratam ao caso em busca de manifestações oficiais. A Abin afirmou que não comenta. O Itamaraty — indagado, inclusive, se Moscou pediu para que o espião seja devolvido — não respondeu. A Polícia Federal silenciou.

 

 

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