Brasileiro roubou nome de criança morta nos EUA e viveu como americano por 25 anos
“Nome completo?”
“Eric Ladd”, responde Ricardo. “É muito comum a gente dar nome de guerra nos Estados Unidos, isso em todas as companhias [aéreas]. Eles pedem para a gente não divulgar muito o nome completo, peço desculpas, mas por Eric Ladd todo mundo me conhece.”
“Local de nascimento?”
“Atlanta, Geórgia”, diz o homem que, segundo o governo americano, é natural de São Paulo.
É assim que se apresenta, em uma transmissão ao vivo de agosto de 2020 no canal brasileiro de YouTube PandAviation, o sujeito que o Departamento de Estado americano afirma que é Ricardo César Guedes.
Convidado a falar sobre sua história de quase 25 anos como comissário de bordo da United Airlines, uma das maiores companhias aéreas do mundo, Ricardo (ou Eric) conta que nasceu nos Estados Unidos, mas, filho de mãe brasileira —aqui se confunde e diz que “meio que os dois”, pai e mãe, são brasileiros—, foi criado em São Paulo. Arremata afirmando que se considera paulistano e que voltou aos EUA aos 22 para trabalhar com aviação.
Hoje ele está preso. Segundo o governo americano, por roubar a identidade de William Ericson Ladd, este sim nascido em Atlanta, no estado da Geórgia, em 1974 —e morto em um acidente de carro antes que completasse cinco anos de idade.
O brasileiro Ricardo César Guedes obteve passaporte dos EUA, fez carreira na aviação, casou-se e comprou uma série de bens fingindo ser americano durante os mais de 25 anos que assumiu a identidade de uma criança morta em 1979, segundo a acusação.
Considerado comissário sênior, chegou a participar de voos humanitários em meio à retirada das tropas ocidentais do Afeganistão, em agosto do ano passado. Fã da Apple, transportava iPhones para vender no Brasil e apareceu em vários veículos jornalísticos em 2012, inclusive nesta Folha, sempre com o nome de Eric Ladd, como a primeira pessoa a comprar uma nova versão do iPad em Nova York após 30 horas de fila.
Ativo na comunidade da aviação brasileira, participava de eventos e palestras, lembra Lito Sousa, ex-mecânico de aviões e hoje um dos influenciadores mais famosos da área. “Ele me escreveu em 2018 dizendo que viria a um evento no Brasil e queria me conhecer. Trouxe bombons com formato de avião que ele mesmo havia feito. Depois nos encontramos em um voo, ele me tratou superbem. E aí o convidamos para jantar aqui em casa. Uma pessoa agradável, boa de conversa”, conta.
Na semana passada, Sousa recebeu da esposa uma sugestão de tema para seu canal no YouTube: a história de um comissário de bordo brasileiro que fingiu ser americano por mais de duas décadas, contada pela primeira vez pelo jornal Houston Chronicle, da cidade do Texas onde o suposto Eric Ladd vivia.
“Estranhei e reconheci o sobrenome. Mandei uma mensagem para ele, ele não recebeu. Fui ver o Instagram, tinha sido apagado. A gente ficou incrédulo. Ninguém nunca desconfiou de nada.”
Não se sabe exatamente como Guedes conseguiu a identidade da criança morta, mas, segundo o governo americano, ele entrou duas vezes no país com o nome brasileiro e visto de turista, em 1994 e 1996. No ano desta segunda viagem, Guedes conseguiu emitir um número de seguridade social (equivalente ao CPF no Brasil) com o nome de Ladd, morto havia 17 anos, no estado da Carolina do Norte, vizinho da Geórgia. Em 1997, foi contratado pela United Airlines —ele havia feito cursos de comissário de bordo no Brasil.
Seu primeiro passaporte americano foi emitido em 14 de abril de 1998, também sem sustos. Ele renovou ou pediu alterações (como mais páginas, já que pela profissão viajava muito) no documento seis vezes, em 2006, 2007, 2009, 2013, 2015 e 2018. Em todas, sem obstáculos burocráticos.
A luz de alerta foi acesa em 2020, quando Ladd se casou com um brasileiro e pediu a alteração do passaporte, para incluir o sobrenome do marido. O Escritório de Assuntos Consulares do Departamento de Estado estranhou que o número de seguridade social tivesse sido emitido só quando ele tinha 22 anos —o documento muitas vezes é expedido para bebês, que precisam ser inscritos em planos de saúde dos pais ou em programas de benefícios do governo.
O órgão então identificou outra pessoa de mesmo nome, data e local de nascimento, o verdadeiro William Ericson Ladd, morto mais de quatro décadas antes. Foi aí que a investigação começou. Ao pesquisar a vida do homem, encontraram uma série de laços com o Brasil —como o fato de ter ido ao país em mais da metade das 40 viagens que fez ao exterior naquele 2020.
Nas redes sociais dele, o governo americano identificou uma brasileira que parecia, pelas fotos e publicações, ser sua mãe. O Consulado Geral dos EUA no Recife foi acionado, e bases de dados apontaram que ela tinha um filho, nascido no Brasil, com mais ou menos a mesma idade do homem.
Os americanos, então, compararam as impressões digitais que o governo brasileiro tinha coletado, nos anos 1990, do filho da mulher e confirmaram que Ricardo César Guedes e aquele que se apresentava como William Ericson Ladd eram a mesma pessoa. O passo seguinte foi consultar a família Ladd, que confirmou a morte do menino e disse que nunca havia visto a pessoa que se passava por ele.
Depois de quase um ano de investigações, Guedes foi preso em 22 de setembro de 2021, no Aeroporto Intercontinental George Bush, em Houston. Os agentes o encontraram no portão de embarque e o levaram até uma sala privada, onde ele se identificou como William Ericson Ladd e apresentou o passaporte.
No interrogatório, ele foi alertado: é crime mentir a um agente federal, e o governo sabia de sua identidade verdadeira. Ele respondeu que nasceu nos EUA, mas foi criado por pais missionários no Brasil.
O processo que tramita na Justiça do Texas relata que um policial afirmou que tinha uma certidão de óbito do verdadeiro Ladd, o que fez Guedes se calar. As autoridades ainda mostraram uma foto do túmulo da criança morta, no Alabama. O brasileiro então invocou seu direito de ficar calado e foi detido.
Na prisão, quando a polícia foi colher suas impressões digitais, Guedes perguntou qual nome deveria preencher no formulário. Segundo o processo, ao ouvir que deveria escrever seu nome verdadeiro, assinou “R. Cesar Guedes”.
Com um mandado de busca e apreensão, autoridades encontraram na casa dele, em Houston, duas cópias da certidão de nascimento de Ladd e um cartão com seu nome verdadeiro. Na ocasião, o marido disse aos agentes que o conhecia desde a infância, no Brasil, e que sabia que ele não era quem dizia ser. Segundo a acusação, o parceiro deve perder a autorização para viver nos EUA, já que entrou com o processo na imigração com base no casamento com um falso cidadão americano.
Guedes, que não tem nenhum outro histórico criminal nos EUA, continua preso no Texas, aguardando o julgamento, marcado para 18 de abril. Procurada, a defesa dele afirmou à Folha que não comentaria o caso. Consta no processo que, no momento da prisão, ele disse aos agentes: “Eu tinha um sonho, e o sonho acabou. Agora preciso encarar a realidade”.
FolhaPress
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