PF investiga elo entre quadrilha de venda de sentenças e ministro do STJ

18 de Outubro 2024 - 08h57

O advogado Roberto Zampieri era conhecido em Mato Grosso pelo bom trânsito que tinha em alguns setores do Poder Judiciário e pela incrível taxa de êxito em casos difíceis ou considerados perdidos. Andreson de Oliveira Gonçalves oficialmente ganhava a vida como empresário do ramo de transporte de cargas. Durante anos, esses dois personagens foram parceiros em um negócio milionário. O advogado captava clientes que tinham interesse em processos que tramitavam no Superior Tribunal de Justiça. O empresário usava sua rede de contatos em Brasília para manipular o resultado de julgamentos. O esquema, revelado pela revista VEJA, funcionou até dezembro do ano passado, quando Zampieri foi morto a tiros em Cuiabá. Ao lado do corpo, a polícia encontrou o celular do advogado. Dentro dele, havia áudios, mensagens e documentos que revelavam a existência do esquema de venda de sentenças que envolvia, até onde se sabia, o gabinete de quatro ministros da segunda Corte mais importante do país. A infiltração criminosa, porém, pode ter ido além. 

A partir dos diálogos e documentos encontrados no telefone do advogado morto, a Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o caso. O material recuperado não deixava dúvidas de que um grupo de advogados e lobistas comprava e vendia decisões judiciais do STJ. Da memória do aparelho foram resgatados mensagens com insinuações sobre o comportamento de vários ministros, minutas originais de sentenças e comprovantes de repasses financeiros. Uma das primeiras providências dos agentes foi separar o que havia de concreto do que parecia ser bravata dos criminosos. Depois dessa peneira inicial, a apuração se concentrou nos gabinetes dos ministros Isabel Gallotti, Og Fernandes, Nancy Andrighi e Paulo Moura Ribeiro. As evidências indicavam que funcionários desses gabinetes haviam sido corrompidos. Em troca de dinheiro, antecipavam veredictos e alteravam decisões de acordo com o interesse do cliente — tudo, em princípio, à revelia dos chefes. O escândalo, supunha-se, estava circunscrito ao segundo escalão do tribunal.

Na semana passada, porém, essa convicção foi abalada. No telefone do advogado morto havia diálogos com indícios de pagamento de propina apenas a servidores do STJ. Seguindo o dinheiro, os investigadores requisitaram ao Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) um levantamento sobre as movimentações dos suspeitos. Surgiu então o fato novo que pode mudar o caso de patamar. Duas autoridades que tiveram acesso à investigação disseram a VEJA que os técnicos encontraram movimentações financeiras consideradas atípicas envolvendo o lobista Andreson Gonçalves, um intermediário e o ministro Paulo Moura Ribeiro. O simples fato de ter sido detectada uma transação classificada como fora do padrão pelo Coaf não significa que o magistrado tenha cometido crime ou recebido propina do esquema de corrupção instalado nos gabinetes do STJ, mas obrigou a polícia a remeter o inquérito ao Supremo Tribunal Federal (STF), que agora vai decidir se autoriza ou não o prosseguimento da investigação. 

A VEJA, Moura Ribeiro negou ter recebido qualquer repasse financeiro do lobista e garantiu que, até a eclosão do escândalo de venda de sentenças, nem sequer havia ouvido falar no nome de Andreson Gonçalves. “Nunca houve nenhuma transação, o que é isso? Não tenho negócio nenhum, nenhum, nenhum. Tenho quase 42 anos de magistratura, nunca aconteceu nada comigo”, disse. O lobista também negou ter realizado qualquer transação com o magistrado. Segundo ele, as acusações de que ele comercializava decisões judiciais são absolutamente falsas e estão prejudicando sua atuação como empresário do setor de transportes. “Me pegaram para Cristo”, resumiu. O lobista jurou nunca ter pisado em qualquer gabinete do STJ nem conversado sobre sentenças ou decisões com quem quer que seja. Os diálogos recuperados pela polícia, no entanto, mostram exatamente o contrário.

Mantido sob sigilo desde que foi apreendido, há mais de dez meses, o conteúdo do aparelho já deu origem a duas outras investigações distintas, além do inquérito da Polícia Federal. A primeira, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, resultou no afastamento de um juiz e dois desembargadores de Mato Grosso envolvidos com a quadrilha. Já no STJ, em Brasília, foi aberta uma sindicância para apurar o envolvimento de servidores dos gabinetes dos quatro ministros já citados. A investigação interna não encontrou até o momento nenhuma evidência de participação dos magistrados, mas já identificou dois funcionários suspeitos de comercializar as decisões.

Os diálogos e os documentos recuperados mostram que havia negociações para que casos envolvendo interesses milionários fossem postergados pelo tribunal, manipulação de mandados de buscas e apreensões, vazamento de pedidos de prisão e até rascunhos de decisões que, a depender do avanço das negociatas, poderiam se materializar ou simplesmente desaparecer sem deixar vestígio. Certa vez, diante de um caso de interesse de Zampieri, Andreson foi acionado pelo colega. “Você garante que ele reverte?”, perguntou o advogado ao comparsa. “Manda ele pagar o da Gallotti que já resolveu”, responde o lobista, se referindo ao atraso de um pagamento combinado a um funcionário da ministra Isabel Gallotti. Diante do pedido de desculpa do advogado, alegando que naquele momento seu cliente estaria descapitalizado, a reclamação foi contundente: “Aí é f… sem grana não anda”. Os arquivos recuperados não deixam dúvidas de que os criminosos também tinham acesso prévio a decisões sigilosas dos ministros. 

No telefone, estavam armazenadas dezenas de comprovantes de transferências de dinheiro de Zampieri para a conta de uma empresa que pertence ao lobista. Há ainda áudios em que Andreson se mostra preocupado com o “atraso” do pagamento das propinas. Há situações bizarras de combinação de supostos pagamentos de suborno, inclusive através de Pix, diálogos explícitos sobre a lucratividade do negócio e documentos que comprovam o comércio de sentenças.

Em 2020, por exemplo, o STJ iria julgar um recurso de um casal de empresários que disputava com um grande banco a propriedade de uma fazenda avaliada em 67 milhões de reais. Zampieri era o advogado da causa. Em uma manobra descrita nas mensagens recuperadas, um “amigo” produziu uma minuta antecipando o que seria o voto do então presidente do tribunal, ministro João Otávio de Noronha, e a ofereceu a Andreson. O rascunho da “decisão”, encaminhada imediatamente ao advogado, listava argumentos processuais para evitar que a tese jurídica do banco fosse analisada pela Corte, o que atendia aos interesses da quadrilha. O lobista informou que o tal “amigo” cobrou 50 000 reais pelo serviço. Identificada com códigos de barras que atestavam sua autenticidade, a minuta da decisão desapareceu do sistema do STJ. Porém, menos de dois meses depois, uma decisão idêntica foi proferida pela ministra Isabel Gallotti. O lobista comemorou: “Aqui sou eu rapaz. Tem que respeitar”, jactou-se após o anúncio da sentença favorável. Zampieri lhe dá parabéns e ressalta que aquilo não era trabalho para qualquer um. “Aqui resolve, Zampi. Até a vírgula é igual… kkkk”, responde o lobista. 

Empresário do setor de transportes, Andreson conhecia Roberto Zampieri há mais de 25 anos. Parceiros, os dois discutiam sobre pagamentos de propinas, falavam sobre estratégias para “fidelizar” clientes e, para evitar deixar rastros, costumavam tratar os temas mais sensíveis por áudios ou ligações via WhatsApp. A partir de julho de 2022, Andreson decidiu ativar um sistema de destruição de mensagens que apagava seus diálogos a cada 24 horas. Ainda assim, no acervo que ficou armazenado no celular, a questão financeira está sempre presente. Pelas conversas, é possível saber que os tais “amigos” responsáveis pela venda de sentenças do STJ cobravam entre 50 000 e 100 000 reais por serviço prestado. Além disso, foram encontrados diversos comprovantes bancários com transferência de valores de uma conta-corrente de Zampieri para a empresa do lobista, a Florais Transportes, com sede em Cuiabá. São repasses de 50 000, 100 000 e 200 000 reais por transação. A polícia estava escrutinando as finanças dos assessores do STJ colocados sob suspeição quando surgiu o relatório do Coaf que paralisou momentaneamente as investigações. Em sua defesa, Andreson afirma que os repasses feitos pelo advogado fazem parte de empréstimos e negócios rurais que os dois tinham em Mato Grosso, onde o mercado de compra e venda de sentenças também operava a todo vapor.

O acervo encontrado no aparelho celular de Zampieri revelou ainda que havia uma proximidade absolutamente imprópria entre o advogado e o desembargador do Tribunal de Justiça mato-grossense Sebastião de Moraes Filho. Vistas no atacado, as mensagens revelam que os dois mantinham uma relação muito além da profissional. Zampieri visitava o magistrado, os dois conversavam frequentemente sobre férias, futebol e processos. O advogado tinha liberdade para pedir ao juiz para votar ou deixar de votar em ações de seu interesse. Também falavam abertamente sobre finanças. 

Nessa época, uma pessoa contou ao juiz que alguém estaria produzindo provas contra ele e o advogado. Zampieri inclusive teria sido filmado entrando na casa do desembargador, segundo o relato do informante. Se essa intimidade viesse a público, seria um constrangimento para ambos. Não se sabe o que aconteceu, mas é fato que isso não abalou a amizade. Duas semanas antes de ser assassinado, o advogado enviou a Moraes Filho uma foto de duas barras de ouro. A polícia acredita que as peças foram repassadas ao juiz. Em agosto passado, já com as investigações em andamento, o CNJ afastou o magistrado de suas funções depois de concluir que havia indícios de que ele recebia “vantagens indevidas” de um “esquema de venda de decisões judiciais”. 

Com informações de Veja

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