"Não existe mais uma vida feliz". A frase é impactante. Há três anos, a vida dos mais de 40 milhões de ucranianos mudou drasticamente. A guerra com a Rússia, que vem diminuindo a população do país, transformou o cotidiano em uma luta diária por segurança, sobrevivência e dignidade. Em meio ao caos, Dmytro Tytor, autor desta declaração, encontrou no Flamengo um refúgio emocional.
A matéria é do ge. Em um país onde os amantes de futebol escolhem torcer por grandes clubes europeus, Dmytro fugiu do óbvio. O Flamengo chegou à vida do ucraniano há mais de 30 anos, quando ainda era possível ser feliz. Em 1993, o fã de futebol e da seleção brasileira assistiu a um jogo do "Mengão", como ele se refere ao time, pela Copa Libertadores.
— Não me lembro qual foi o adversário, mas fiquei muito impressionado com o futebol rubro-negro. Passei a ler mais jornais (ainda não havia internet) para saber mais sobre o Fla. Meu time favorito, claro, era o Flamengo de 81 e o Flamengo de 92 — contou Dmytro ao ge.
Ele também assistiu a um especial sobre Zico, maior ídolo da história do Flamengo e que se tornou seu jogador preferido. No papo com o ge, ele ainda citou os nomes de Romário, Bebeto e Renato Gaúcho. Carpegiani e Zagallo foram seus treinadores favoritos.
— Mais tarde, quando o Mengão conquistou o hexacampeonato brasileiro, em 2009, com Adriano, ele se tornou um dos meus jogadores preferidos. Também gostei muito do Ronaldinho. Em 2015, realizei um sonho e viajei para o Rio de Janeiro. Meu amigo e jornalista brasileiro Fabricio Yuri Ribeiro ajudou a organizar minha visita ao museu do Flamengo, onde dei uma entrevista. Depois, o Fla criou e publicou no YouTube um vídeo com essa entrevista, e eu acabei ficando popular no Brasil — brincou o ucraniano de 46 anos.
O amigo e jornalista brasileiro Fabricio Yuri escreveu para o ge sobre a história de Dmytro, em 2009. De lá para cá, muita coisa mudou no Flamengo e na vida do ucraniano. A partir de 2019, ele viu seu time passar a dominar o futebol sul-americano e ganhou um novo ídolo:
— Meu jogador favorito, atualmente, é o Arrascaeta. Também fiquei muito impressionado com as atuações de Gabigol e Pedro, que são verdadeiros ídolos da torcida rubro-negra. Meus treinadores favoritos são Jorge Jesus e Filipe Luís.
Flamengo como refúgio emocional
Foi na Era de Ouro do Flamengo, no entanto, que a vida de Dmytro virou do avesso. A Guerra Russo-Ucraniana começou em fevereiro de 2014, mas se intensificou em fevereiro de 2022, quando a Rússia lançou uma invasão em larga escala ao território ucraniano. O conflito tem raízes complexas, que incluem disputas geopolíticas, a aproximação da Ucrânia com a União Europeia e a OTAN, questões históricas entre os dois países e o desejo do Kremlin de manter influência sobre a região.
A população ucraniana é a mais afetada: milhões de civis foram deslocados internamente ou forçados a deixar o país, cidades inteiras foram destruídas, e milhares de vidas foram perdidas. A guerra também provocou impactos globais, como crises energéticas, inflação e insegurança alimentar.
— A guerra mudou completamente nossas vidas aqui na Ucrânia. Não existe mais uma vida feliz. Temos muitos problemas com eletricidade, somos atacados quase todos os dias por mísseis e drones russos. Há muitas mortes de civis e destruição da infraestrutura. É muito doloroso… O futebol se tornou uma forma de refúgio emocional, mas devido a essa situação tão difícil com a falta de eletricidade e os constantes ataques aéreos, não tenho uma oportunidade real de assistir aos jogos do Flamengo. Mesmo assim, apoio meu clube amado sempre que ele entra em campo.
Quando veio ao Brasil, Dmytro atuava como procurador-geral em Kiev, capital da Ucrânia. Hoje, ele trabalha em uma empresa estatal de energia. Devido a problemas enfrentados pelo torcedor rubro-negro, a reportagem levou sete dias para terminar a entrevista.
— A situação atual na Ucrânia, e em Kiev em particular, é muito difícil. Muitas pessoas pensam que Kiev é uma cidade majoritariamente pacífica porque a guerra está longe, mas isso não é verdade. Toda semana, às vezes duas ou três vezes por semana, há ataques massivos com mísseis e drones. Os drones atacam Kiev quase todos os dias: de 50 a 100 drones atingem, todas as noites, a infraestrutura energética e civil. Depois de tantos ataques, enfrentamos uma situação muito difícil com a eletricidade: ficamos sem energia de 14 a 16 horas por dia. Temos enormes problemas no abastecimento de água, não conseguimos tomar banho de chuveiro, não conseguimos viver normalmente em nossas casas.
— Mas esses problemas não são nada em comparação com a vida dos nossos soldados. Todos os dias vamos trabalhar, nos comunicamos, fazemos piadas, rimos, apesar de as pessoas morrerem todos os dias. E isso é horrível… mas é a guerra.
Dmytro não conseguiu assistir aos jogos dos títulos da Libertadores e do Brasileirão neste ano. Também não acompanha em tempo real o desempenho do time na Copa Intercontinental. Isso não o impede, no entanto, de se atualizar sobre as informações e de fazer postagens em sua página sobre o Flamengo nas redes sociais.
— Atualmente, acompanho os jogos do Flamengo apenas por sites e redes sociais. Antes da guerra, também assistia às transmissões pela TV e pela internet. Quando acompanhava os jogos, vestia a camisa e apoiava meu clube do coração como um verdadeiro torcedor. Infelizmente, aqui não há muitas pessoas que conheçam ou torçam por clubes brasileiros, incluindo o Flamengo. Espero que o Mengo conquiste a Copa Intercontinental. Espero poder assistir à final contra o PSG e poder celebrar quando o Flamengo vencer.
— Tenho muito orgulho de fazer parte do exército de milhões de torcedores do Flamengo no Brasil e no mundo inteiro, e espero viajar ao Rio de Janeiro novamente e assistir a um jogo — concluiu Dmytro Tytor.