O futebol italiano vive grande crise há mais de uma década, e a seleção da Itália corre risco de ficar de fora da terceira Copa do Mundo consecutiva. Sob o comando de Gennaro Gattuso, a Azzurra é segunda colocada do Grupo I nas Eliminatórias Europeias e tem jogos decisivos contra Estônia e Israel nos próximos dias. Mas o que explica a longa falta de resultados dos italianos?
A matéria é do ge. O cenário de clubes começou a cair no início da década de 2010, com a implementação do Fair Play Financeiro da Uefa. Com finanças deficitárias, os gigantes Milan, Inter, Juventus perderam protagonismo na Europa, assim como o Campeonato Italiano em geral. Olhando para a seleção italiana, a queda é notória: desde 2006 a Itália não passa da fase de grupos de um Mundial. O que mais chama atenção é a falta de jogadores de destaque no ataque.
Escassez de atacantes talentosos
Apesar da queda, a Itália contou com goleiros de primeiro nível nos últimos anos, de Buffon a Donnarumma. Também sempre teve defensores e meio-campistas de topo, como Bonucci, Chiellini, Bastoni, Verratti, Jorginho, Tonali e Barella, entre outros. No entanto, não despontaram nomes no setor que anteriormente contou com Paolo Rossi, Roberto Baggio, Francesco Totti, Del Piero, Inzaghi e Luca Toni.
A atual dupla de ataque da seleção italiana é formada pelo argentino naturalizado Mateo Retegui, que acaba de se transferir da Atalanta para o Al-Qadsiah, da Arábia Saudita, e por Moise Kean, de altos e baixos na carreira até aqui. O jornalista Massimo Franchi, do Tuttosport, analisa a formação de atletas na Itália para ajudar a explicar a falta de talentos.
"Uma vez fui assistir a uma partida amadora, de um time de bairro de categoria sub-8, em Turim. O time da casa vencia por 1 a 0, um dos reservas ainda não tinha participado, e seu pai gritava com o treinador pedindo sua entrada. Era um driblador. Faltando poucos minutos para o fim, ele entrou e tentou um drible, mas foi desarmado, e o treinador insultou o garoto. Se já começarmos aos oito anos com essa mentalidade... A cultura italiana de defender gerou sério problema geracional", Massimo Franchi, jornalista do Tuttosport.
A Itália desenvolveu e consolidou o "Catenaccio", sistema tático baseado na solidez defensiva, criado na década de 1950, que influenciou a forma de se defender posteriormente no futebol mundial. E também imortalizou alguns dos maiores defensores da história, como Franco Baresi e Paolo Maldini. Mas a falta de grandes talentos no ataque é algo mais recente.
Em longa conversa com o ge, Massimo Franchi contou que em grandes cidades da Itália o que não faltam são escolinhas e clubes de formação apoiados pela federação italiana. O jornalista demonstra incômodo, no entanto, com a forma como os meninos são "tirados das praças" muito cedo e afirma que os professores desses clubes de formação normalmente são pais ou tios dos meninos, deixando a desejar em profissionalismo.
Na última década, apenas dois jogadores nascidos na Itália foram artilheiros do Campeonato Italiano (Immobile (3x) e o já aposentado Quagliarella). Olhando para as 10 primeiras temporadas do século XXI, este número sobe para sete goleadores italianos (Dario Hübner, Christian Vieri, Cristiano Lucarelli, Luca Toni, Totti, Del Piero e Di Natale). O jornalista do Tuttosport acredita que o excesso de estrangeiros nos clubes locais prejudica o desenvolvimento dos jogadores italianos.
— Os times italianos têm muitos estrangeiros. Isso prejudica os jovens jogadores italianos, porque é como cortar as asas de um pássaro. As diretorias dos clubes preferem comprar um francês ou um suíço, porque são mais baratos. Isso porque os próprios times italianos supervalorizam os jovens talentos, mas que talentos são esses?! — questiona Franchi.
O excesso de estrangeiros gera ampla discussão na Itália. A Inter de Milão, que conquistou em 2009/10 a última Champions League de um time italiano, tinha na ocasião um time titular formado só por jogadores nascidos em outros países. A seleção seguiu a tendência e naturalizou uma série de atletas. Nos últimos 10 anos, Éder, Luiz Felipe, João Pedro Galvão, Jorginho, Emerson Palmieri e Rafael Tolói foram exemplos de brasileiros que vestiram a camisa da Azzurra.
Pelos mais variados motivos, de graves lesões a questões disciplinares, alguns dos principais talentos de ataque da Itália dos últimos 15 anos não confirmaram as expectativas. Atletas que chegaram a demonstrar qualidade em algum momento e que, se mantivessem regularidade na carreira, poderiam ter contribuído para melhores resultados.
Nomes como Giuseppe Rossi, Mario Balotelli, El Shaarawy, Lorenzo Insigne, Federico Chiesa e Ciro Immobile. Os três últimos, por exemplo, formaram o ataque campeão da Euro 2020, único título da itália desde a Copa de 2006.
Crise de identidade tática
Seja seguindo as bases do Catenaccio ou sob a influência de Arrigo Sachi, na década de 1990, com linhas altas e forte pressão no campo de ataque, a Itália se notabilizou por ter treinadores de grande destaque. Com a evolução do futebol e a prevalência de um jogo com maior intensidade no mais alto nível, a Itália perdeu relevância no mercado de treinadores e, por mais que ainda tenham grandes nomes, eles não estão treinando a seleção.
Antonio Conte, Simone Inzaghi e Carlo Ancelotti são os principais técnicos italianos dos últimos anos em termos de resultados e bons trabalhos. O primeiro teve ótima passagem pela Itália entre 2014 e 2016, mas resolveu voltar ao cenário de clubes para treinar o Chelsea, onde foi campeão da Premier League na época. O segundo trocou a Inter de Milão pelo Al-Hilal, e Carleto disse nunca ter sido convidado pela Azzurra.
Cabe ao pouco vitorioso (como treinador) Gattuso a missão de comandar a seleção tetracampeã do mundo. No entanto, em 12 anos de carreira de técnico de futebol, o ex-volante tem apenas a conquista de uma Copa Itália, com o Napoli. Ao lado de Buffon, atual chefe de delegação da Itália, Gattuso é mais uma opção para motivar os jogadores do que desenvolver grandes ideias de jogo.
— Gattuso tem um coração imenso, mas tem seus limites. Olha seu histórico... Agora terá jogos mais fáceis. Pode se classificar para os Playoffs, mas taticamente não é um Ancelotti, nem um Capello, tem seus limites. Ele é quase um treinador sombra. O Buffon, eu não digo que é mais respeitado que Gattuso, porque seria ofensivo, mas ele tem grande peso no vestiário — afirma o jornalista do Tuttosport.
A dificuldade de acertar no treinador é semelhante ao que acontece com a seleção brasileira, que vive anos de crise e foi comandada por quatro diferentes técnicos desde a saída de Tite, ao fim de 2022. Para o ex-jogador Philipp Lahm, capitão da Alemanha campeã mundial em 2014, a falta de intensidade do futebol italiano dificulta que os talentos locais atinjam os potenciais máximos.
"A crise tem uma causa esportiva principal: em campo, falta iniciativa, comprometimento e capacidade atlética. Os jogadores correm menos. Li uma estatística há alguns anos que dizia que o time da Bundesliga com os valores mais baixos corria mais do que o time com os valores mais altos da Série A. A Itália não atualizou seu sistema operacional, ele funciona muito lentamente. Essa falta de dinamismo leva a um problema de qualidade. Quando a pressão adversária é muito baixa, nenhum jogador desenvolve suas habilidades a um nível de classe mundial. É por isso que não há mais Baggio, Del Piero, Cannavaro, Maldini, Baresi, Gattuso ou Pirlo", analisou Philipp Lahm em coluna no jornal The Guardian.
Outro grande nome do futebol a criticar o atual momento da Itália no quesito tática foi Fabio Capello. O ex-treinador, multicampeão por Milan, Real Madrid, Juventus e Roma, reclamou da formação de jogadores e da influência de Pep Guardiola nos atletas da Azzurra.
— Não estou surpreso. Nas academias, os jovens são instruídos a seguir táticas, manter a posse de bola e passar para trás para o goleiro, em vez de serem incentivados a desenvolver qualidade e criatividade. Devo dizer que sofremos a pior parte do Guardiolismo: nossos meio-campistas nunca se voltam para o gol adversário, enquanto outros olham constantemente para frente e executam a uma velocidade que só podemos sonhar — apontou Fabio Capello.
As críticas de Capello aconteceram após a derrota por 3 a 0 para a Noruega, ainda em junho. Os noruegueses lideram o Grupo I, com 15 pontos, contra 9 de Itália e Israel, segundo e terceiro colocados, respectivamente. Gattuso estreou no comando da seleção na última Data Fifa, e as primeiras impressões foram positivas, inclusive no funcionamento do ataque.
O primeiro jogo com o novo treinador foi uma goleada de 5 a 0 sobre a Estônia. Na sequência, vitória importante sobre Israel, mas essa com mais emoção e gols sofridos do que se esperava, com o placar de 5 a 4 definido nos últimos minutos. Neste sábado, novamente a Itália enfrenta a Estônia, desta vez fora de casa. E na próxima terça-feira tem duelo direto contra Israel, atuando em seus domínios.
Faltam quatro rodadas para o fim das Eliminatórias e, com um jogo a menos que seus rivais, a Itália ainda tem condições de buscar a liderança para se classificar direto para o Mundial. Caso fique na segunda posição, terá que disputar os Playoffs, assim como em 2018 e 2022, quando acabou eliminada para Suécia e Macedônia do Norte. Se terminarem em terceiro, os italianos ficarão fora do Mundial pela terceira vez seguida.