Por vezes, as primeiras dívidas de uma pessoa chegam antes mesmo dela saber ler o próprio nome. No Brasil, menores de idade podem ser legalmente incluídos como sócios de empresas, desde que representados por um responsável.
Na prática, a brecha na lei tem transformado meninos e meninas em “empresários fantasmas”, responsabilizados judicialmente por falências, dívidas trabalhistas e fraudes cometidas por adultos.
“Eles nem olham idade. É um CPF e um nome”, resume a especialista antifraude Renata Furst, uma das vítimas desse tipo de prática. Ela descobriu ainda adolescente que devia milhões em nome de uma empresa aberta por um parente. Na infância, oficiais de justiça batiam à porta de casa, e a mãe pedia que se escondesse. Outras vezes, chegavam cartas com seu nome. “Eu achava que era um príncipe escrevendo pra mim”, relembra.
Casos assim não são raros. Segundo dados da Serasa, cerca de 250 mil menores de idade já tiveram o nome envolvido em registros de dívida no país. Especialistas apontam que o problema nasce de uma contradição legal: o Código Civil permite que crianças e adolescentes sejam sócios de empresas, mas o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante proteção integral e o direito ao desenvolvimento sem interferências patrimoniais.
“O Código Civil não acompanhou a evolução constitucional. Ele ainda trata crianças como objetos de posse”, explica um advogado especialista em direito civil. “Há uma disparidade entre as normas. O ECA protege, mas o Código abre a porta para esse tipo de abuso.”
Os impactos são duradouros. Muitos descobrem a fraude apenas na vida adulta, ao tentar abrir uma conta bancária ou financiar um bem e perceber que estão impedidos por ordens judiciais.
“Eu tinha 18 anos quando o banco ligou dizendo que minha conta havia sido bloqueada por decisão judicial”, conta uma vítima. “Tentei explicar que, em 1996, eu tinha seis anos, mas a atendente respondeu: ‘Querida, não interessa. A gente tem que cumprir a ordem’.”
Em alguns casos, o próprio sistema judiciário demora a reconhecer a condição de vítima. “Quando a Justiça vai atrás dos bens da empresa, e não há patrimônio, ela parte para os bens dos sócios, sem importar a idade”, explica um jurista. “Essas pessoas crescem com o nome sujo, sem acesso a crédito, e carregam dívidas que não são delas.”
Para especialistas, é preciso que o país enfrente essa contradição legal e moral. “Crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e têm direito constitucional ao pleno desenvolvimento da personalidade”, diz o advogado. “CPF de criança não é solução para problema de adulto. Quando pais ou responsáveis usam o nome dos filhos para escapar de dívidas, o sistema precisa intervir.”